Contratos, metas e licitações: o que todo médico precisa saber ao prestar serviço para a Prefeitura
Por que importa. Para médicos recém-formados, atuar na rede municipal é oportunidade de experiência e impacto social. Mas contratos mal compreendidos geram glosas, atrasos de pagamento e conflitos. Este artigo reúne o essencial para ingressar e trabalhar com segurança jurídica e administrativa — sem substituir orientação específica para casos concretos.
1. Introdução
A atenção primária e os serviços de urgência/emergência municipais vivem expansão e rotatividade de equipes. Nesse cenário, o médico lida com editais, contratos, metas assistenciais e fluxos de faturamento.
Sem familiaridade, surgem problemas: produtividade não reconhecida, glosas por documentação, prazos de pagamento confusos e dúvidas tributárias. Este texto oferece um panorama prático de como entrar, o que a Lei 14.133/2021 muda no dia a dia, quais cláusulas exigem atenção, como funcionam as retenções e quais cuidados documentais reduzem riscos.
2. Como o médico entra no serviço municipal
2.1 Credenciamento (chamamento público)
Normalmente aberto e contínuo, o profissional adere às condições do edital e recebe por produção ou parâmetros definidos. Foque em limites de agenda, critérios de glosa e reajuste. O descredenciamento deve ser motivado e seguir as regras publicadas.
2.2 Contratação direta pela Lei 14.133/2021
A lei prevê dispensa e inexigibilidade. Em termos simples: dispensa afasta licitação por hipóteses legais; inexigibilidade ocorre quando não há competição viável (ex.: notória especialização, quando cabível). Em ambos, é exigido processo formal e publicidade, comuns em emergências e desassistência.
2.3 Via OS/OSC (gestão indireta)
Quando há Organização Social ou OSC, o contrato é firmado com a entidade (e não com o Município). As metas e indicadores do contrato de gestão “descem” para o seu contrato, impactando produtividade, relatórios e remuneração. Leia dois documentos: o seu contrato e o contrato de gestão.
3. O que a Lei 14.133/2021 muda na prática
Reforça o planejamento via termo de referência: objeto, qualidade esperada, métricas de desempenho, forma de medição e preço. Isso define como a produção será aferida e quando o pagamento é liberado.
Há gestão e fiscalização do contrato, com um fiscal/gestor que atesta a execução — o atesto é pré-requisito do pagamento. Em mudanças relevantes (ex.: aumento abrupto de insumos ou carga), pode haver reequilíbrio econômico-financeiro, se previsto e justificado.
Quanto a aditivos e prorrogações, há limites legais. A transparência é regra: editais, contratos e aditivos devem estar em portais oficiais — consulte antes de assinar.
4. Cláusulas que mais afetam o dia a dia
4.1 Objeto e escopo assistencial
Defina com precisão locais, carga horária, plantões, sobreaviso e telemedicina (se houver). Descrições vagas geram interpretações divergentes e cobranças indevidas.
4.2 Metas, produtividade e glosa
Metas podem envolver volume de consultas, procedimentos e indicadores da APS (ex.: pré-natal adequado, controle de crônicos, vacinação). A medição deve casar com e-SUS/PEC e relatórios da unidade. Glosa = rejeição de parte do faturamento por documentação insuficiente. O contrato precisa dizer quando glosar, como contestar e em quanto tempo.
4.3 Reajuste e prazos de pagamento
Exija índice e data-base. Fluxo típico: relatório → atesto → nota/fatura → liquidação. Os prazos de cada fase devem ser claros, inclusive juros e correção por atraso.
4.4 Rescisão e sanções
Podem ser unilaterais, por descumprimento ou interesse público, desde que motivadas. É saudável prever mediação administrativa antes do litígio. Multas precisam ser proporcionais; o saldo produzido até a rescisão costuma ser devido se atestado.
4.5 Responsabilidade técnica, prontuário e LGPD
A prática médica é, em regra, obrigação de meio. Guarda do prontuário, sigilo, compartilhamento com a equipe e notificações compulsórias seguem CFM e LGPD. Em auditorias, prontuários completos e coerentes com a produção são a melhor defesa.
5. Tributação essencial (sem juridiquês)
Varia conforme você atue como pessoa física ou pessoa jurídica. O IRRF pode ser retido na fonte, com códigos e bases distintas. O ISS (LC 116/2003), em regra, é devido no local da execução: verifique alíquota e se há retenção.
Se o texto indicar postos fixos, subordinação e dedicação exclusiva nas dependências do tomador, pode caracterizar cessão de mão de obra para fins previdenciários, gerando retenções específicas de INSS.
Em geral, a emissão de nota fiscal depende do atesto do fiscal. Sem atesto, não há liquidação.
6. Documentação assistencial que sustenta o contrato
Garanta compatibilidade entre agenda/produção, prontuário e relatórios. Registros clínicos devem conter anamnese, hipóteses diagnósticas, condutas e, quando aplicável, consentimento informado.
Em ambientes com metas do Previne Brasil, a qualidade do cadastro territorial e do registro no e-SUS afeta diretamente o reconhecimento da produção. Respeite prazos legais de guarda e assegure rastreabilidade para auditorias.
7. Conflitos de interesse e ética profissional
Quem também atua no privado conveniado deve evitar indução de pacientes do SUS e manter separação de agendas. Observe regras locais sobre nepotismo/impedimentos. Na comunicação profissional, adote tom informativo e sóbrio, sem promessa de resultado — alinhado ao CEM/CFM e, quando houver conteúdo jurídico informativo, à ética da OAB.
8. Dois estudos de caso curtos (opcional)
Caso A — glosa por divergência documental. Produção elevada informada no sistema, mas parte dos prontuários sem registro de conduta/CID. Resultado: glosa parcial. Solução: padronizar notas evolutivas e fazer conferência semanal coordenação–médicos.
Caso B — reequilíbrio por expansão de turno. Ampliação do horário sem ajuste financeiro elevou custos. Com base na cláusula de equilíbrio econômico-financeiro, apresentou-se memória de cálculo e histórico de demanda. Desfecho: aditivo com valores e metas revistos.
Conclusão
Trabalhar com prefeituras exige domínio básico de editais, contratos e metas. Quando o objeto é claro, a medição é objetiva e a documentação clínica é coerente, a previsibilidade aumenta e o risco de glosas cai.
Antes de assinar, leia o termo de referência/edital, confirme quem é o fiscal e como funciona o atesto, entenda reajuste e prazos e alinhe registros com a coordenação da unidade. Em pontos cinzentos, formalize dúvidas por escrito.